Depois de uma breve pausa voltamos a serie "Passista de coração", hoje vamos contar a origem do passista.
O passista masculino é um dos elementos fundamentais da constituição simbólica dos desfiles de escolas de samba. Embora na contemporaneidade divida sua esfera espacial de atuação com a passista feminina, apresenta, em seu percurso histórico, uma gênese específica de seu surgimento que possibilita algumas reflexões particulares acerca da compreensão e análise de sua trajetória.
A referência primeva diz respeito ao surgimento de um personagem mítico denominado “Tijolo da Portela”, cujos registros apontam como o criador do personagem “passista”. O presente estudo não pretende descartar a possibilidade de que outro fenômeno paralelo a esse tenha ocorrido em instância menos revelada ou passível de registro do que esta referida, nos autos bibliográficos. De fato, não se pode afirmar deliberadamente ter sido esse registro o “único e definitivo” como versão para apresentar o surgimento da figura do passista no carnaval carioca. Tal referência, porém, será adotada como referência dessa gênese não exatamente para aferir sua exclusividade, mas com a finalidade de ilustrar três momentos distintos: o da dança do samba como ação coletiva no contexto dos desfiles, o da dança realizada por um “solista” em posição de destaque e um terceiro (atual) em que os “solistas” são congregados em alas e caracterizados com base em arquétipos arbitrariamente escolhidos. O “passista”, uma vez concebido como personagem composto para a lógica espetacular dos desfiles, caracterizou-se por um estilo de dança que acrescentou, aos elementos já constitutivos da dança dos sambistas, um repertório de passos ensaiados com margem para outros de improviso, criando dentro das escolas de samba um “solista da dança”, como se pode perceber no registro do site “Portelaweb”, a partir de observação sobre obra de (
Sapato de couro, salto carrapeta e meias brancas, cano longo até quase os joelhos. Calça azul, camisa branca de mangas compridas e colete azul. Passava pela avenida levantando aplausos do público. “Tijolo, Tijolo, Tijolo!”, gritavam à sua passagem. Inusitado, harmônico, gracioso, ele era a alegria do público que lhe gritava o nome. Era, também, ansiado pelos fotógrafos que registravam os desfiles dos anos 60. Para chegar àquele conjunto de coreografias, Tijolo confessa terem sido diversas as suas fontes de inspiração. A maioria delas, contudo, assimiladas no cinema. Tijolo encerrou sua carreira como passista no carnaval de 1970.
A “dança do samba” considerada matriz do gênero musical no Brasil sugere uma origem no “samba de roda”, assim apresentada em (OLIVEIRA, AMAZONAS & DORIA):
O Samba de Roda surge como expressão de um contexto coletivo, se legitimando ao estar presente, nas festas e cultos de um modo geral e também no espaço doméstico, onde, ao término das ‘obrigações’, as pessoas se reúnem para dançar e se divertir. A música é conduzida por um cantor que é acompanhado por homens e mulheres que dançam e repetem os versos acompanhando com palmas ritmadas, formando uma roda. No centro se encontra um individuo que dança sozinho, fazendo gestos ao ritmo da música e num dado momento, ele se dirige a outro participante da roda, e com uma umbigada, marca a troca dos dançarinos no centro da roda.
Não obstante o fato de a dança do samba propriamente dita ter em suas práticas de origem a “umbigada” e interações frequentes do homem com a mulher, o que também se fez refletir nos desfiles das agremiações, até então, a figura solista dentro da roda para o samba “de escola de samba” era feminina, como registro em (PORTELA WEB):
(...) a ideia de incluir a dança nos números do conjunto não foi pacificamente aceita: com as mulheres, tudo bem; mas com os homens, ficou difícil. O caso é que, até então, o samba dançado em solo, no meio da roda, era “coisa de mulher”.
O surgimento de Tijolo, tal qual é sugerido pelos registros históricos que o documentam, sugere a mudança de dois paradigmas: a inserção da figura masculina proeminente na roda e a instituição da figura do solista de samba, algo também inusitado já para as configurações do desfile da referida época, ainda segundo (PORTELA WEB):
O samba deu fama a Tijolo, levando-o a percorrer o mundo. Entretanto, na década de 50, Tijolo não era bem visto na quadra de ensaios da Portela, ao querer se impor como solista em meio ao coletivo das alas. Acabava sempre sendo colocado para fora pela direção de harmonia. É que naquela época não existia a figura do passista. O solo na coreografia do samba, naquela época, não era levado aos desfiles. As alas, as baianas e o corpo da escola eram preparados no sentido de dançar evoluindo para a frente, em função de compor bem a harmonia.
Segundo (REGO;2006), em 1958 o então diretor de shows musicais Carlos Machado, conhecido como “o rei da noite”, tomou conhecimento das incursões particulares de Tijolo na quadra da Portela e o convocou para um teste, instituindo sua dança no musical Million Dollar, Baby. E foi a partir desse fato que o personagem “passista” afirmou-se como constituinte da estrutura dos desfiles de escola de samba, conforme (PORTELA WEB):
A presença de Tijolo na revista de Carlos Machado repercutiu intensamente no universo do samba. E a repercussão do fato de um sambista destacar-se na noite viria a abrir espaço para uma nova configuração nos desfiles: a presença do passista. E foi a partir do sucesso e da criatividade de Tijolo no palco que a figura do passista foi institucionalizada, descendo do "music hall" para a avenida, num inusitado percurso.
Enquanto “solista da dança do samba” dentro da realização dos desfiles, o personagem “passista” passou por um processo contínuo que efetivamente alterou o curso de sua natureza e proposição. A princípio efetivado por um sujeito protagonista da ação, tal ofício passou – com base no registro considerado “original” da afirmação de Tijolo como “passista” - a distinguir ou nomear outros seguidores desse ofício, gerando um novo sujeito dentro do panteão das escolas de samba.
Com o passar do tempo, a figura do solista voltou a constituir uma estrutura de grupo. Propõe-se neste artigo perceber que ocorreu a migração de uma “gênese do passista” (Tijolo da Portela) a um “gênero passista” (designação genérica para todo e qualquer solista do samba, inclusive feminino). Contraditoriamente, esse personagem criado em uma proposição solista acabou, sobretudo ao final dos anos 70 e início dos 80, constituindo uma organização coletiva disposta em “alas”, agrupado, durante sua apresentação nos desfiles. Ocorre, a partir desse período, uma dupla via de execução da dança do samba pelos passistas: ora apresentam-se coletivamente no contexto da “ala” que desfila na avenida, ora apresentam-se individualmente nos “desafios de roda” das quadras ou em shows/apresentações modais. Quando exibidos em grupo, são categorizados como “segmento”, em esfera massiva e não-distintiva de atuação coletiva. Quando exibidos na roda ou nos shows, são categorizados como “solistas”, em esfera individual e distintiva.
Esse dado também modificará substancialmente a compreensão da execução da dança do passista, uma vez que ela passa a ser coletiva em vez de solo, como em sua proposição original.
O tempo constitui um elemento importante na análise de uma cultura (...) Cada mudança, por menor que seja, representa o desenlace de numerosos conflitos. Isto porque em cada momento as sociedades humanas são palco do embate entre as tendências conservadoras e as inovadoras. As primeiras pretendem manter os hábitos inalterados, muitas vezes atribuindo aos mesmos uma legitimidade de ordem sobrenatural. As segundas contestam a sua permanência e pretendem substituí-los por novos procedimentos.
Dentro do universo do samba, toda e qualquer mudança deverá ser respaldada ou recorrente a uma justificativa capaz de solidificar a nova escolha. Assim, no intuito de corroborar as transformações sofridas no decorrer do tempo, a atual configuração das alas de passistas dentro de uma escola de samba optou por criar uma “composição de personagem” para os elementos que a constituem.
É relevante, porém, considerarmos, neste estudo, que essa diversidade de composição abrange tão somente o passista masculino. As características da dança, a postura cênica e a indumentária do passista masculino possuem inúmeros matizes, enquanto as mesmas proposições numa passista feminina parecem mais sintetizadas e assertivas num contexto mais genérico da “cabrocha”, considerada a “dançarina de samba” por executar seus passos e explicitar seu charme em um personagem de certa forma “universal” para o gênero.
Adotamos, para este estudo, uma leitura tridimensional da composição de personagem adotada pelos passistas masculinos na época atual, dada nos seguintes níveis:
1. Personagem da escola (caracterização que identifique a escola de samba à qual o passista pertence);
2. Personagem-Indivíduo (caracterização pessoal, única, cotidiana do passista);
3. Personagem do enredo (caracterização temática transitória, intrínseca ao enredo proposto para determinado desfile).
Considerando-se o “personagem do enredo” uma construção de nível temporário, voltada apenas para a lógica do desfile do ano, as duas outras serão aquelas que efetivamente gerarão os atributos identitários do passista contemporâneo. Ao contrário da proposição de Tijolo, que era tão somente “sambar como ele mesmo era”, o passista masculino contemporâneo espelha-se em arquétipos específicos de suas escolas-mãe, normalmente sob orientação dos diretores/coordenadores de ala, estes últimos sempre fazendo menção de adotarem “a tradição da escola” como elemento norteador.
Tomemos por exemplo as referências de cinco arquétipos utilizados como modelo construtor de “personagens da escola”, aqui referendados por apresentarem uma distinção mais clara desse propósito.
A caracterização dos passistas era o figurino de malandro, sem uniformização das roupas, mas trajando terno, chapéu panamá e exibindo não apenas dança de samba, mas elementos lúdicos de capoeira. Segundo depoimentos, tinha uma propensão a desafiar o público e cortejar as mulheres presentes, sendo inovadora também por seu caráter provocativo e indolente, construindo uma performance da “marginalia” da Lapa antiga, os malandros “milongueiros” (brigões, arruaceiros).
Os passistas praticavam, nas quadras, o chamado “samba-duro”, onde um elemento dançava numa roda e desafiava outros a “bandá-lo” com uma pernada, a fim de derrubá-lo. O malandro a ser derrubado postava-se no meio da roda e mantinha seu corpo esguio e ereto, daí a referência à “dureza” no termo dessa dança.
Bom esse foi um resumão da origem do "Passista", ate a próxima semana....
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